9/7/2016 19 Comentários Despida Já ando a escrever este post há semanas e até agora não o consegui concluir, porque, de certa forma, é das publicações mais pessoais que algum dia já escrevi e tenho medo. Mas o medo nunca conquistou, por isso, de vez em quando, lá ia até ao rascunho e acrescentava uma frase ou qualquer coisa, só para não desistir do texto. Quero tanto partilhá-lo convosco.
Sinto-me despida enquanto vocês lêem cada palavra minha. Sinto-me despida porque agora vocês também sabem o que eu tanto me esforcei para esconder. Mas já não aguentava mais, estava cansada. Estou cansada. Escondi-me em casa, a tentar ao máximo não me encontrar com ninguém que tivesse conhecido o meu eu antigo. Queria que elas preservassem para sempre a imagem que tinham de mim, que não me olhassem de forma diferente. Escondi-me atrás das calças de ganga e das camisas simples. Não queria atrair atenções. Não queria que ninguém comentasse o meu andar estranho ou as cicatrizes que agora me tatuam o corpo. Na realidade, o que eu queria era ser invisível e desaparecer, mas não podia, porque até para isso precisava de ajuda. Perdi para sempre a capacidade de andar, mas, de facto, o que eu perdi foi a autonomia e a capacidade de fazer coisas sozinha. Para me deslocar preciso do apoio do pai ou da mãe, ou de alguém ou de uma canadiana. Parece relativamente simples, mas não é. Sou inconformada por natureza e esta situação leva-me mesmo aos limites. Às vezes apetecia-me ser todas as profissões do mundo que conseguissem corrigir isto e dar-me outra vida. Digam-me, se souberem, como é que se aceita uma situação que nos foi imposta por negligência? Sim, eu sei que a AF aos poucos ia continuar a revelar-se e a mudar-me, mas é inegável o que o partir a perna me fez, dado que até esse dia eu andava... sozinha. Portanto, eu agora preciso de ajuda, seja ela qual for, e é horrível: não tenho autonomia, não faço as coisas como antes e perdi a privacidade, a auto-estima e a confiança. Ninguém percebe, por mais que digam que sim, e não venham com tretas. «Pai, leva-me à faculdade.», «Mãe, vem comigo ao shopping!», «Mãe, leva-me aos cavalos!», «OOOOH pai!! Não te esqueças de mim e de me ajudar a descer as escadas!», «Vê lá se arranjas um sítio sem muita gente, porque ficam a olhar e eu não quero, sff», «OOOOH pai... OOOOH mãe...». Esta é a minha vida há 3 anos. Tinha acabado de fazer 18 anos. Onde eu moro há apenas 4 autocarros ('carreiras') por dia - sim, 4! - e eu, se os meus bobis não colaborarem, praticamente não consigo sair de casa sozinha. Se o piso estiver molhado por um motivo qualquer, podem esquecer a canadiana. É só inútil, porque escorrega, e torna-se num acessório que não só não fica bem com a nossa roupa, como nos faz sentir ainda mais deficientes. É um facto. Habituem-se. Também não consigo andar de autocarros de cidade nem de metros. Há uma espécie de equação que justifica esse facto: primeiro, porque as pessoas têm as suas vidas, têm pressa, estão cansadas e também se querem sentar - sim, eu sei que tenho direito aos banquinhos, mas partimos para o ponto número dois que responde ao resto. Segundo, porque, por um motivo que eu desconheço, as pessoas novas, com cara bonita e que não estejam em cadeira de rodas, não podem ser deficientes, não podem precisar de ajuda e é uma falta de respeito se solicitam os lugares a alguém que tenha 40/50/60 anos e que ainda esteja pronto para as curvas. Nem mesmo com os meus pais gosto de andar, porque caso alguém veja a minha mãe com sacos de compras e eu não e depois me vá sentar, a boca é certa: «A mãe anda feita burra de carga e a menina não». Terceiro, parece haver uma competição entre transportes públicos para ver qual chega mais rápido ao destino e estes arrancam sem darem tempo às pessoas com mobilidade reduzida a oportunidade de se acomodarem. Desisti de andar em transportes públicos em Portugal. Depois, as acessibilidades que determinados edifícios e instituições oferecem a pessoas com mobilidade reduzida são só ridículas. «Ah, nós temos escadas com elevador para cadeira de rodas.» - Mas estão a brincar? Mobilidade reduzida não se resume a cadeira de rodas. Uma grávida tem mobilidade reduzida. Um idoso. Um adulto que parta um braço. Um esquerdino que não tem corrimão do seu lado. Um invisual. Uma criança. Uma pessoa. Alguém. Acabo por desistir e solicitar ao pai ou mãe que me façam determinadas coisas, coisas que são minhas, da minha vida, mas que me vejo obrigada a partilhar. Quando ganho coragem e saio de casa para fora da minha área de conforto, fico triste. Sempre triste. As pessoas olham e comentam. Comentam o facto de «uma mulher nova andar com um homem muito mais velho» ou pela «pouca vergonha de duas mulheres andarem» ou por «hoje 'namorar' com um, amanhã já estar com outro». As pessoas comentam o auxílio que um pai, uma mãe e um amigo dão. Como não ficar triste? De rastos? Se optar por usar a canadiana, as pessoas não olham para mim, não falam comigo e tratam-me como se tivesse um atraso. E quando falam comigo, fazem-no tão devagar que me dão sono e quase que me explicam palavra a palavra o que querem dizer, tipo «Euuuu... teeenhooo... uuum... cãããoo. Eeele... faaaz ãããoo, ãããooo». Na generalidade, o pessoal da minha idade não se aproxima, eu não sou como eles e o diferente causa alguma confusão, sobretudo em como integrar. Para ser sincera, não me admira. As pessoas nem sequer conseguem aceitar quem não come carne. Não estou a gozar. É parvo. Tenho 21 anos e tenho de andar sempre «com alguém atrás». Tenho vontade de conhecer o mundo, mas não tenho vontade de sair de casa. Não me interpretem mal. Adoro os meus pais do fundo do coração, são os melhores do mundo, estão sempre a dar-me o melhor e a tentar dar-me mais autonomia - não os trocava por nada - mas sinto-me uma criança e chata. Tenho de andar sempre com eles, de braço ou de mão dada, ou então sempre dependente deles. É psicologicamente dilacerante para mim e sei que, de certa forma, para eles também. No início, as pessoas ainda se aproximavam e falavam comigo, perguntavam o que me tinha acontecido e eu explicava tudo direitinho. Quando descobriam que nunca ia largar a canadiana ou que podia vir a passar para uma cadeira de rodas, desistiam. Já não servia para ser amiga delas. Nem sequer davam oportunidade. Ouvi pessoas a organizarem saídas e festas de aniversário e não me convidarem porque, diziam-me, eu não iria conseguir ir, porque não ando normal. Acabei por construir um muro. Um muro tão alto à minha volta que não deixo ninguém entrar. Respondo às pessoas, sou simpática com elas e tiro-lhes as dúvidas, mas não passa disso. Pelo menos assim não há ilusões, nem conversas estúpidas. Fiquei sem auto-estima e sem confiança. Vivo agora dentro do meu muro e quase que consigo ser feliz. Sinto-me despida. Agora vocês sabem. M.
19 Comentários
Alvaro
10/10/2016 09:39:48 pm
A sociedade consegue ser cruel...Espero que um dia que te consigas sentir "normal"e viver a tua vida feliz👋
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M
10/10/2016 11:30:03 pm
Obrigada, Álvaro.
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Pula
10/10/2016 10:06:55 pm
Não quero acreditar que uma mulher com a tua garra se sinta "despida" mas entendo... Só espero que entendas que és alguém de uma força terríve, que és linda, que és uma guerreira,e não tens que te sentir "despida" porque ninguém como tu se pode sentir "despido" só porque é um pouco diferente dos outros, e digo diferente porque és sem dúvida muito mais interessante do que aqueles que te vêm como diferente.... Bjo
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M
10/10/2016 11:35:55 pm
Muito obrigada pelas palavras, Pula!
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Alexandra Gregório
10/10/2016 10:08:05 pm
Gratidão pela tua partilha, por teres conseguido exprimir os teus sentimentos. Tu és mais independente do que julgas, contudo tens toda a razão a sociedade não está preparada para aceitar a diferença. É muito fácil falar, dar dinheiro para comprar cadeiras de rodas ou pagar tratamentos no estrangeiro mas aceitar verdadeiramente a diferença é agir em conformidade é mais difícil. Continua a partilhar e pode ser que contribuas para a mudança de mentalidades.
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M
10/10/2016 11:56:14 pm
Muito obrigada pelo comentário, mãe.
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Lídia
10/10/2016 10:38:38 pm
Hoje, dou ainda mais valor à tua luta, a ti.
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M
10/11/2016 12:15:55 am
Meu coração,
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Pula
10/11/2016 12:21:42 am
Ao expores o que sentes, pensa que talvez estejas a ajudar muita gente. Só te posso agradecer, quando te "leio", sinto me tão pequenina... Nunca tenhas medo ou vergonha de expores o que sentes... Lava a alma, e sentimo nos mais leves... Continua a escrever o que te vai na alma, pois ao teu lado, somos insignificantes... 😘😘
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M
10/12/2016 11:21:52 am
Obrigada por todo o apoio que me tens dado, Pula. Obrigada por me gostares de ler e por de alguma forma sentires que estou a ajudar.
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Luís Monteiro
10/11/2016 12:47:22 am
Tenho muito orgulho em ser teu pai, contigo aprendo sempre algo de novo todos os dias, não pares de lutar, bjs do pai que te adora! Obrigada Pula pelas palavras, bjs
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M
10/12/2016 11:22:37 am
E eu tenho orgulho em ser tua filha.
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Pula
10/13/2016 12:50:57 am
São sentidas as minhas palavras e não tens de agradecer,tal como tu não sou de fazer favores para agradar, mas mas sim de dar a minha mão para ajudar, pai guerreiro, tu és um grande Pai, diria mesmo o melhor que conheço por isso também te admiro e adoro ainda mais. sim Inês ajudas, falo por mim, quando te leio e te vejo tão forte, lutadora, e linda, e tão frágil ao mesmo tempo, aquilo que tenho sentido ( e tu sabes o que é e como me tenho sentido) atenua está minha existência dolorosa... Continua a escrever pois pelo menos sabes que ajuda "uma" pessoa bjo :-) <3
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Alvaro
10/11/2016 02:53:08 pm
Acho que és uma mulher com muita coragem por estares a escrever assim publicamente. E no meu caso o facto de acompanhar os teus posts no teu blog ainda me incentiva mais a viver a vida de forma mais intensa e aproveitar cada vez mais o dia a dia. Não sei nem faço ideia do incómodo e da tristeza que sentes em viver com estas condicionantes, pois sou uma pessoa relativamente saudável, sei é que se seguires com esta força de vontade vais conseguir os teus objectivos e ser feliz. Desejo te que cada vez mais te sintas em paz e que essa tristeza se vá extinguindo com o passar do tempo.
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M
10/12/2016 11:26:31 am
Álvaro,
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Minha querida, sigo o teu blog de uma forma "religiosa". Tudo o que escreves é inspirador. Inspirador para mim que também luto cada dia com um problema hereditário cardíaco, deixado de herança por um pai que não está mais presente entre nós (uma mistura de sentimentos, sempre), inspirador para toda esta sociedade esquisita (sim, é este o termo) e preconceituosa que julga os outros apenas pela aparência.
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M
10/12/2016 11:31:08 am
Oh, Daniela,
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11/14/2016 07:59:16 pm
Acabei de ler este texto e fiquei ainda algum tempo a pensar se realmente havia de comentar ou não. Mas decidi fazê-lo, não porque ache que tenha algo a acrescentar de relevant, porque na realidade já disseste tudo- Mas decidi comentar porque partilhares algo tão intimo é tão corajoso. Acredito que consigas ajudar muita gente. Hoje tocaste-me com as tuas palavras, inspiraste-me. Obrigada pela tua visita ao meu blog, se te consegui inspirar metade do que tu conseguiste fazer comigo ja vou ficar feliz.
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M
11/14/2016 08:37:27 pm
Querida Vanessa,
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